Eu costumava ser uma águia-real, mas quando me encontraste não havia mais nada em mim.

Nada além de asas feridas, penas perdidas e patas quebradas, tal qual uma andorinha num céu triste de inverno.

A vida deu-me chapadas de mais. Tantas, tantas, que me tornei um amontoado de coisas feias e frágeis. Sem sonhos. Sem perspetivas. Sem promessas de um futuro.

É o que acontece quando a vida nos esbofeteia e ficamos muito amedrontados para revidar. Olhar ao meu redor era a cena mais dolorosa de sempre!

Toda eu era sangue, ossos e histórias adormecidas numa cama onde não escolhi deitar. E se os golpes que desferi em mim e me deixaram com feridas em carne viva eram aterradores, então encarar o fantasma de alguém que eu amava era a sensação mais agonizante que eu já experimentara.

Arranquei os meus olhos só para não ter de encarar a miséria em que o mundo me tornou. Às vezes precisamos ser radicais e cortar o mal pela raiz, mas o tamanho do poço é diretamente proporcional à incapacidade de sair dele, sobretudo se tentarmos sair sozinhos. O poço era gelado e medonho. Arranhei-me o mais que pude só para sentir o mínimo de calor possível.

Foi quando tu chegaste. Escutei-te os passos; fortes e imponentes. Senti-te as mãos; quentes e grandes, grandes o suficiente para que eu coubesse nelas! Senti-te o cheiro; o cheiro a paz e a conforto. Mas não te vi, e queria ver-te desesperadamente... Idiota! Por que é que arranquei os meus olhos?

Então, como se fosses um mago e com um trejeito qualquer das mãos – onde eu estava disposta a morar -, distingui a luz e vislumbrei as tuas formas.

Domaste os meus demónios, cuidaste desta alma perdida e juraste que eu voltaria a encontrar-me.

Dizem que o amor é isso… Aceitar o lado mais negro de quem amámos, mesmo que nos possamos perder também.

Agora, quando sinto os dias demasiado pesados e a vida ameaça sufocar-me, acredito que há algures um lugar bonito, porque sei que tu sempre levas-me lá!

De algum modo, libertaste os pássaros agitados de dentro de mim e fizeste-os voar outra vez. E eu também sei que isso é amor, porque o amor liberta-nos. Sempre!

Hoje já posso abrir os olhos outra vez, e já não tenho medo do fantasma de alguém que eu amava, porque o fantasma era eu. E tu, deixaste-me suficientemente viva, para eu não poder assombrar-me outra vez.

Carta publicada no livro "Três Quartos de Um Amor" em Fevereiro de 2018

Letícia Brito